«Devíamos todos ter presente que muitos homicídios são, na verdade, femicídios» e que não é forçada ou exagerada uma certa «perspetiva de género do homicídio ao longo da história da humanidade» se nos lembrarmos dos autos de fé, onde se queimavam sobretudo as mulheres acusadas de bruxaria, de alguns costumes de infanticídio feminino e até dos crimes de «honra».
A expressão «femicídio» foi eloquentemente cunhada em 1976, pela professora Diana Russel, emérita socióloga e feminista, durante o depoimento sobre criminalidade letal e misógina que esta ativista dos direitos das mulheres prestou numa das sessões do Tribunal Internacional sobre Crimes contra as Mulheres, um evento de quatro dias que reuniu, em Bruxelas, mais de 2 mil mulheres e participantes de 40 países.
Nesse depoimento, do qual retirei este excerto, Russel defendia perante a realidade criminológica letal que vitimiza as mulheres que:
Já no seculo XXI, a Declaração de Viena sobre Femicídio, aprovada pelas Nações Unidas, propôs uma definição ampla de femicídio como a morte, provocada por outrem, de mulheres e meninas por causa de seu género, em resultado, nomeadamente: 1. de violência praticada nas relações de intimidade, por parceiro ou ex-parceiro; 2. de tortura e violência letal misógina de mulheres; 3. da eliminação de mulheres e meninas em nome da «honra»; 4. da eliminação seletiva de mulheres e meninas no contexto de conflitos armados; 5. da eliminação de mulheres por causa do dote; 6. Da violência sobre mulheres e meninas por causa de sua orientação sexual e identidade de gênero; 7. Da eliminação de mulheres e meninas aborígenes e indígenas por causa do seu género; 8. Do infanticídio feminino e feticídio por seleção sexual baseada no género; 9. da mutilação genital feminina; 10. de acusações de feitiçaria; 11. da criminalidade e violência exercida sobre mulheres relacionada com crime organizado, tráfico de drogas, tráfico de pessoas e proliferação de pequenas armas.
Em 2019, quase meia década volvida sobre o evento da capital belga, assistimos atónitos e incrédulos, no nosso país, a uma sucessão inusitada de desfechos trágicos que resultaram na morte de 13 das nossas concidadãs e nos convoca a uma ação concertada de repúdio coletivo.
Esta triste espuma dos dias inquieta-nos e convoca-nos a uma ação concertada de repúdio coletivo.
Na história mais recente da aliança entre os movimentos feministas pela igualdade e pela dignidade das mulheres e o Estado, a quem compete conceber e implementar as políticas públicas de defesa e promoção dos direitos humanos, em particular estratégias públicas de prevenção e repressão da violência exercida sobre as mulheres, o instrumento de controlo social privilegiado a que se tem mais frequentemente recorrido é o direito penal.
O direito penal enquanto instrumento sociojurídico que se ocupa da proteção dos bens jurídicos fundamentais e das ofensas mais intoleráveis dos mesmos tem acolhido, num processo cada vez mais inclusivo, a magnitude e a gravidade das várias condutas que integram o fenómeno da violência contra as mulheres. Daí a consagração sucessiva no nosso código penal, entre outros, dos crimes de violência doméstica, de tráfico de pessoas, de mutilação genital feminina, de perseguição, casamento forçado e importunação sexual, só para falar naqueles que viram a sua tipificação formulada mais recentemente.
No que diz respeito à criminalidade contra a liberdade sexual das mulheres pensamos que, ainda nesta legislatura, se podem alcançar no Parlamento alguns ajustamentos que convergirão para tornar a formulação dos crimes previstos nos artigos 163.º e ss do Código Penal mais consonantes com o previsto na Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica.
O Governo declarou o dia de 7 março como dia nacional de luto pela morte das nossas concidadãs, Lúcia, Maria, Luiza, Vera, Fernanda, Marina, Helena, Lara e Ana Maria, silenciadas quando ousaram refazer as suas vidas.
Diante desta perda significativa de vidas, do sofrimento de tantas famílias e da consternação geral, é nosso dever lidar com os sentimentos de zanga e culpa, tantas vezes presente nos processos de luto - sendo eles individuais ou coletivos -, reorganizando-nos de molde a reforçar os mecanismos de proteção das mulheres/vítimas e o controlo penal dos agressores.
Enquanto responsável pela pasta da Justiça inclino-me respeitosamente perante as mortes destas nossas concidadãs, e percebo o desalento dos que têm sede de respostas mais efetivas, mais dissuasoras, mais protetivas.
Devemos ter a humildade e o sentido de responsabilidade de colocar no espaço público, o escrutínio das nossas políticas públicas de prevenção e repressão deste flagelo.
E, neste momento crucial, juntarmos todos os meios ao nosso alcance para intervirmos no que falha, nomeadamente, reforçando obrigações de articulação e de apoio que não estejam ainda integralmente realizadas; melhorando os níveis de proteção e de capacitação das vítimas.
É disso que curamos ao celebrarmos protocolos entre o Ministério da Justiça, a Procuradoria Geral da República e três das mais destacadas organizações de apoio às vítimas de violência contra as mulheres, a Associação de Mulheres Contra a Violência, a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima e a União Mulheres Alternativa e Resposta.
Tratamos de formalizar uma abordagem concertada e cooperante entre autoridades judiciárias e organizações não-governamentais de apoio à vítima, criando nos Departamentos de Investigação e Ação Penal de Braga, Aveiro, Coimbra, Lisboa-Norte e Lisboa-Oeste e Faro - já dotados de secção especializada de tramitação de inquéritos por crimes de violência doméstica ou de crimes de violência baseada no género -, Gabinetes de Atendimento à Vítima que assegurem, de forma integrada, com caráter de continuidade, o atendimento, a informação, o apoio e o encaminhamento personalizado de vítimas, tendo em vista a sua proteção.
Este é um pequeno passo, que encerra, contudo, um ensaio de energização da articulação entre alguns dos intervenientes fundamentais nas estratégias de proteção às vítimas de violência nas relações de intimidade: polícias, magistrados do Ministério Público e organizações não governamentais de apoio às vítimas. Com efeito, aquelas organizações são chamadas a atuar em estreita cooperação com os magistrados no território nevrálgico do inquérito criminal, i.e., nos Departamentos de Investigação e Ação Penal.
Não podemos continuar a permitir que mulheres se matem, ou morram, às mãos de quem devia mas não as soube amar.